domingo, 19 de abril de 2020

A morte de Albertine

Outra morte que marcará indelevelmente o Narrador do Em busca do tempo perdido refere-se a de sua amada Albertine. Na verdade, essa morte é o que suscitará ao Narrador o maior período de tempo de reflexão a respeito desse fato definitivo de nossas vidas. Depois de praticamente ser expulsa da casa do Narrador por causa de um ciúme exagerado, Albertine vai para o interior, para a casa de uma parente, mas ainda escreve para Marcel com a intenção de reatar os laços e voltar para a casa. Entretanto, antes que o Narrador possa tomar alguma atitude, ele recebe um bilhete da sra. Bontemps com uma notícia arrasadora:

"Meu pobre amigo, nossa Albertine já não existe. Perdoe-me dizer essa coisa horrível a quem gostava tanto dela. Foi jogada contra uma árvore pelo cavalo, durante o passeio. Apesar de todos os nossos esforços, não escapou. Antes tivesse eu morrido em seu lugar!"

Depois desse bilhete, o Narrador se confrontará com a inexorabilidade da morte e esse pensamento o guiará durante muito tempo. Abaixo várias referências à tristeza e ao sentimento de culpa, tal como descrito por Marcel Proust no sexto volume da obra, A Fugitiva, na tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida comum, talvez para sempre, que começava; meu coração atirou-se a ele, mas já não estava mais ali, Albertine morrera.

Ligada que estava a todas as estações a lembrança de Albertine, par que eu a perdesse seria preciso que as esquecesse todas, prestes a conhecê-las de nov, como um velho atacado de hemiplegia e que reaprende a ler; seria preciso que eu renunciasse a todo o universo.

(...) tudo isto modificava o caráter de minha tristeza retrospectiva tanto quanto as impressões de luz ou de perfume que lhe  estavam associadas, e completava cada um dos anos solares que eu tinha vivido - e que, só pelas suas primaveras, suas árvores, suas brisas, já eram tão tristes por causa da lembrança inseparável dela -, duplicando-o com uma espécie de ano sentimental, em que as horas não eram definidas pela posição do sol, mas pela espera de um encontro, em que o comprimento dos dias ou os progressos da temperatura eram medidos pelo voo de minhas esperanças, pelo progresso de nossa intimidade, pela transformação progressiva do seu rosto, pelas viagens que ela fizera, pela frequência e pelo estilo das cartas que escrevera durante certa ausência, pela sua maior ou menor precipitação em me ver de volta.

Então, ao pensar no vazio que eu sentiria agora voltando para casa, que não mais veria cá de baixo o quarto de Albertine, cuja luz se apagara para sempre, compreendi o quanto, naquela noite em que, deixando Brichot, eu imaginara sentir tédio e pesar por não poder ir passear e amar por aí afora, compreendi o quanto me enganara, e era somente porque julgava inteiramente segura a posse daquele tesouro cujos reflexos vinham lá do alto até mim, que eu me descuidara de apreciar-lhe o valor, e que fazia com que me parecesse forçosamente inferior a outros prazeres, por pequenos que fossem, mas que, procurando imaginá-los, eu avaliava. 

A ideia de que temos de morrer é mais cruel do que a morte, porém menos que a ideia de que alguém morreu, e que, aplanando-se depois de haver engolfado a criatura, estende, sem um redemoinho sequer naquele ponto, uma realidade de onde essa criatura está excluída, onde não existe mais nenhuma vontade, nenhum conhecimento, e da qual é tão difícil remontar à ideia de que essa criatura viveu, quanto é difícil, no que toca à lembrança recentíssima de sua vida, pensar que seja assimilável às imagens sem consistência, às lembranças deixadas pelas personagens do romance que lemos.

Agora não estava mais em parte alguma, ainda que percorresse a terra de um polo a outro não encontraria mais Albertine. A realidade que se havia fechado sobre ela voltara a tornar-se compacta, apagara até o rastro do ser que nela submergira. Não era mais que um nome, como aquela sra. de Charlus, de quem diziam com indiferença os que a tinham conhecido: "Era encantadora".

(...) o que me causava espanto não era, como nos primeiros dias, que Albertine, tão viva em mim, pudesse não existir mais sobre a face da terra, pudesse estar morta, mas que Albertine que não existia mais sobre a terra, e morrera, houvesse permanecido tão viva em mim.

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