sexta-feira, 17 de abril de 2020

A tradução da Recherche

Não trabalho com tradução nem pertenço à área da literatura, mas acredito que quando a pessoa se dispõe a traduzir Proust é como começar a penetrar numa floresta da infância que se sabe repleta de monstros, os quais estão prestes a devorar o intruso. Ou então, como um homem que se voluntaria para ir à guerra e quando embarca para a primeira batalha, não sabe se será possível retornar. A tradução de Em busca do tempo perdido, pela sua extensão, contendo mais de um milhão de palavras e repleta de longas orações, constitui-se num trabalho de fôlego. A primeira tradução total da obra realizada por uma única pessoa é devida a Eva Rechel-Mertens, que verteu para o alemão a Recherche em apenas incríveis quatro anos, de 1953 a 1957 [1]. Outra tradução total realizada por uma única pessoa foi realizada pelo poeta italiano Giovanni Raboni, que traduziu a obra para a sua língua materna a partir de 1983 sob a égide da editora Arnoldo Mondadori, de Milão [2,3]. No Brasil, o poeta carioca Fernando Py também conseguiu a façanha de verter para o português toda La Recherche, que foi publicada pela editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, em 2016. De acordo com o próprio Fernando Py "não é tarefa tranquila traduzir uma obra de vulto como a de Proust. Ainda mais quando já existem outras em português. Mas não há dúvida de que é uma aventura intelectual largamente compensadora, um trabalho altamente gratificante" [4]. Houve uma tentativa de tradução para o inglês feita por Charles K. Scott Moncrieff, que conseguiu traduzir os seis primeiros volumes, mas a sua morte em 1930 o impediu de trabalhar no último volume e concluir o projeto.

Assim, a maioria das traduções é realizada por um grupo de tradutores. A versão inglesa moderna foi realizada pela escritora-tradutora americana Lydia Davis (Swann's Way), pelo escritor-tradutor australiano James Grieve (The Shadow of Young Girls in Flower), pelo escritor-tradutor australiano Mark Treharne (The Guermantes Way), pelo escritor-tradutor inglês John Sturrock (Sodom and Gomorrha), pela escritora-tradutora inglesa e professora universitária Carol Clark (the Prisoner), pelo escritor-tradutor inglês Peter Collier (The Fugitive) e pelo escritor-tradutor inglês Ian Patterson (Finding Time Again) [1]. Essa tradução multinacional foi capitaneada pela editora inglesa Penguin Press, que permitiu que o trabalho fosse levado a cabo em pouco tempo, a expensas de não formar um todo homogêneo. De acordo com o blogueiro Allan Ray Jasa [5], que fez a leitura de um fôlego, Davis, Sturrock e de certa forma Patterson, escolheram uma tradução que conservou muitas palavras próximas do francês, ocasionando certas sintaxes estranhas no inglês. Por outro lado, traduções nas quais o texto ficou com um inglês mais moderno foram conseguidas por Grieve, Treharne, Clark e Collier. Isso representa uma das dificuldades na tradução da obra. No Brasil, além da tradução recente assinada pelo poeta Fernando Py como já comentado, existe uma tradução mais antiga realizada por vários escritores para a editora Globo de Porto Alegre. Essa tradução brasileira, que utilizo em várias postagens desse blog, foi realizada pelo poeta Mario Quintana (os quatro primeiros volumes [6-9]), pelo poeta Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar (A Prisioneira) [10], pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva) [11] e pela escritora e ensaísta Lúcia Miguel Pereira (O Tempo Redescoberto) [12]. O problema da coerência nessa tradução brasileira assinada por diversas pessoas e ainda por cima ser baseada na versão não definitiva da obra francesa é discutido minuciosamente na tese de doutorado da Profa. Sheila Santos [1]. Espero conseguir ler mais sobre o assunto.


Referências:

[1]Sheila Maria dos Santos, (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de A La Recherche Du Temps Perdu de Marcel Proust, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: 2018.

[2] Marcel Proust, Alla Ricerca del tempo perduto, La Prigioniera, Traduzione di Giovanni Raboni, Arnoldo Mondadori Editore, Milano: 1989.

[3] A contracapa da edição de bolso Oscar Mondadori afirma que "è d'essere stata tradotta interamente (per la prima volta nel mondo) da una sola persona, il poeta Giovani Raboni". Contudo, de acordo com a Ref. [1], "Agostini Ouafi assinala que Rabani não trabalhou só, tendo recebido a colaboração editorial, linguística e literária de Marco Beck, Giorgio Coroyi e Jean-Louis Provoyer".

[4] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Tradução de Fernando Py, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro: 2016.

[5] https://medium.com/@allanrayjasa/on-reading-the-entire-in-search-of-lost-time-by-marcel-proust-9be5279f822a

[6] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann, Tradução de Mario Quintana para Du cotê de chez Swann, 12a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1990.

[7] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, Tradução de Mario Quintana para À l'ombre des jeunes filles en fleur, 12a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1995.

[8] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: O Caminho de Guermantes, Tradução de Mario Quintana para Le côté de Guermantes, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[9] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: Sodoma e Gomorra, Tradução de Mario Quintana para Sodome et gomorrhe, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[10] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira, Tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar para La prisonnière, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[11] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: A Fugitiva, Tradução de Carlos Drummond de Andrade para Albertine disparue, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1992.

[12] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Redescoberto, Tradução de Lúcia Miguel Pereira para Le temps retrouvé, 8a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1988.


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