quinta-feira, 16 de abril de 2020

A morte de Swann

Durante a sua vida cheia de reflexões e observações minuciosas acerca das pessoas da sociedade francesa do final do século XIX e de seus sentimentos, o Narrador de Em busca do tempo perdido encarará a morte de vários conhecidos e de algumas pessoas amadas. A descrição dessas mortes é um dos pontos centrais na obra principal de Marcel Proust. Assim, o desaparecimento da avó do Narrador representa um momento sublime, de grande literatura (já apresentada em outra postagem), quando é possível descobrirmos, na tradução poética de Mário Quintana que "sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, tinha-a deitado sob a aparência de menina e moça". O tempo passará e a intermitência do coração, segundo o próprio Narrador, fará com que a lembrança do ente querido seja conseguida apenas de tempos em tempos, até que finalmente o passar dos anos levará ao esquecimento total. 

Em relação ao escritor Bergotte, o aspecto mais importante deste acontecimento terminal é o fato de seus livros expostos nas livrarias se transformarem num símbolo de ressurreição, como se o grande artista, na verdade, continuasse a sobreviver nas suas obras de arte. No que diz respeito à Albertine - que viveu com o Narrador um romance complexo, denso e repleto de traições e desconfianças - a morte trouxe tristeza e angústia, até atingir, após muito tempo, a indiferença e o esquecimento. Poderíamos também lembrar aqui da existência e morte do pintor de mãos gordas e amigo, cuja única recordação de sua vida anônima será um quadro deixado, e que não se encontra mais no salão onde ele fora originalmente exposto. E também lemos sobre o triste final do velho Charles Swann - personagem central do volume inicial da obra, No caminho de Swann - que foi assim descrito pela tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar no quinto volume da obra, A Prisioneira:

A morte de Swann impressionara-me na ocasião, profundamente. A morte de Swann! Swann não tem nesta frase o simples papel de um genitivo. Quero referir-me à morte particular, à morte enviada pelo destino ao serviço de Swann. Pois dizemos morte para simplificar, mas são tantas as mortes quantas as pessoas. Não possuímos sentido que nos permita ver, correndo a toda velocidade em todas as direções, as mortes, as mortes ativas dirigidas pelo destino a este ou àquele. Muitas vezes são mortes que só se desobrigarão inteiramente de sua tarefa dois ou três anos depois. Correm, vão pôr um câncer nas entranhas de um Swann, saem depois para outras tarefas, só voltando quando, feita a operação pelos cirurgiões, é necessário repor o câncer. Depois vem o momento em que se lê no Gaulois que a saúde de Swann inspirou cuidados, mas que a sua indisposição está em perfeita via de cura. Então, poucos minutos antes do último suspiro, a morte, como uma religiosa que nos tivesse assistido em vez de nos destruir, chega para acompanhar os nossos derradeiros instantes e coroa com uma auréola suprema a criatura para sempre enregelada cujo coração cessou de bater. E é essa diversidade das mortes, o mistério de seus circuitos, a cor de sua charpa fatal que dá um quê tão impressionante às linhas dos jornais: "Soubemos com vivo pesar que o sr. Charles Swann faleceu ontem em Paris, na sua residência, vítima de pertinaz moléstia (...)".


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