sábado, 18 de abril de 2020

O incipit da Recherche.

        Na postagem passada fizemos várias referências ao excelente trabalho da Profa. Sheila Santos, da Universidade Federal de Santa Catarina, que realizou uma análise primorosa da primeira tradução brasileira da obra Em busca do tempo perdido, tal como publicado pela editora Globo [1]; o intuito da investigação, entre outros, foi o de identificar a uniformidade linguística da tradução coletiva. A professora utiliza diversas páginas para fazer a análise das frases iniciais, o incipit, do livro de Marcel Proust. Aqui vou fazer uns poucos comentários sobre a longa discussão que existe a respeito dessa temática.

        Antes de ir ao incipit do Em busca do tempo perdido, no caso, o início do primeiro volume da obra No caminho de Swann, acho que é interessante relembrar uma lição popular de Umberto Eco, "Seis Passeios Pelos Bosques da Ficcção" [2]. Eco era um fã de Gérard de Nerval, mais particularmente da obra Sylvie, sobre a qual ele ministrou uma disciplina de pós-graduação na Universidade de Columbia. No Seis Passeios Eco faz uma análise de diversos aspectos da obra, mas começa discutindo a frase inicial de Sylvie: Je sortais d'un théâtre où tous les soirs je paraissais aux avant-scènes en grande tenue de soupirant. Segundo Eco, essa é uma frase difícil de ser traduzida para o inglês porque o tempo verbal utilizado é o pretérito imperfeito, mas na língua saxônica não existe esse tempo. Isso impõe uma dificuldade para o tradutor, mas Eco propõe duas possíveis traduções: I came out of a theater, where I appeared every evening in the full dress of a sighing lover e I came out of a theater, where I used to spend every evening in the proscenium boxes in the role of an ardent wooer. Eco lembra que o pretérito imperfeito é interessante porque ele tem caráter simultâneo de duração e de interação. No primeiro aspecto o verbo mostra algo que estava acontecendo no passado mas não fornece informação sobre o início e o fim da ação. Quando dizemos, 'eu estava lendo', há uma imprecisão quanto ao tempo preciso em que isso ocorreu. No segundo aspecto, de interação, Eco afirma que na ação representada pelo imperfeito a ação se repetia. Empregado na primeira frase de Sylvie, o imperfeito fornece uma imprecisão temporal que será importante no desenvolvimento do romance. Eco ainda discute outros aspectos da obra, mas o importante para essa postagem é o tempo verbal utilizado por Nerval.

        Retornemos ao incipit do livro principal de Marcel Proust. Segundo a professora Sheila Santos, "comumente, considera-se constitutivo do incipit apenas a primeira frase da obra, que no caso da Recherche seria “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”. Porém, ele pode estender-se além desse limite, abarcando uma sequência textual mais longa, como, por exemplo, as primeiras frases ou o primeiro parágrafo." Assim, de acordo com a professora, pode-se considerar o incipit da obra as duas primeiras frases:

Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n'avais pas le temps de me dire: “Je m'endors”.”

        Muitos artigos já foram escritos tentando decifrar esse início da obra de Proust. Em relação às versões brasileiras, a professora da UFSC fornece uma interpretação para "as transformações linguísticas operadas pelos tradutores brasileiros da Recherche". Antes de ver as explicações, vejamos as duas versões brasileiras para as frases iniciais de No Caminho de Swann:, respectivamente devidas a Mario Quintana e a Fernando Py:

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”.”

Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Vou dormir”.”

A tradução italiana de 1952, assinada por Natalia Ginzburg para a editora Einaudi de Turim, é a seguinte:

“Per molto tempo, mi sono coricato presto la sera. A volte, non appena spenta la candela, mi si chiudevan gli occhi così subito che neppure potevo dire a me stesso: “M'addormento.”

Por seu turno, a primeira tradução inglesa, devida a C.K. Scott Moncrieff, aparece da seguinte maneira:

“For a long time I would go to bed early. Sometimes, the candle barely out, my eyes closed so quickly that I did not have time to tell myself: “I'm falling asleep.”

Já na tradução inglesa mais moderna, de Lydia Davis, encontramos o seguinte texto:

For a long time, I went to bed early. Sometimes, my candle scarcely out, my eyes would close so quickly that I did not have time to say to myself: “I'm falling asleep.”

      De acordo com a Ref. [1], o advérbio de abertura da obra, "longtemps", vai fazer eco com as palavras finais do romance, três mil páginas mais a frente: "dans le Temps", que se constitui no encerramento do Le temps retrouvé. Para traduzir esse advérbio que carrega consigo muito significado, os tradutores brasileiros utilizaram a locução verbal "durante muito tempo". Observe-se que as traduções italiana e inglesas também escolheram expressões com significado similar. Já o tempo verbal da primeira frase é o passé composé, que é um tempo verbal com pouca utilização por parte do autor, segundo a Ref. [1]. Talvez se Proust tivesse utilizado o pretérito imperfeito no começo da obra - como destacado por Umberto Eco com referência à obra de Nerval - isso tivesse sugerido um caráter de sonho ou de irrealidade ao texto da Recherche, mas ao contrário, os fatos e lembranças rememorados eram bastante reais para o Narrador, e assim tal tempo verbal não poderia ser utilizado. Destaca-se que o imperfeito, apesar desse início, é bastante utilizado por Proust ao longo da obra, para destacar principalmente a interconexão entre o passado e o presente. De qualquer forma, há uma ambiguidade temporal na primeira frase da Recherche com a utilização do passé composé que será seguido por uma série de imparfaits nas restantes frases do parágrafo. É interessante também destacar que a expressão no presente “je m'endors” ganha uma tradução de Mario Quintana no mesmo tempo verbal, assim como a tradução italiana de Ginzburg. Fernando Py, por sua vez, prefere traduzir para uma expressão no tempo futuro, enquanto as duas versões inglesas utilizam um present continuous. Essas são apenas algumas das sutilezas das primeiras frases do romance, na verdade, a análise que pode ser realizada relativa a elas é muito mais complexa. Para os que quiserem se aprofundar nesse tema podem se dirigir à Ref. [1] e respectivos títulos citados na bibliografia da tese.


[1] Sheila Maria dos Santos, (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de A La Recherche Du Temps Perdu de Marcel Proust, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: 2018.

[2] Umberto Eco, Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção, Tradução de Hildegard Feist, editora Companhia das Letras, São Paulo: 2004.

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