Tarso Freire
Anaximandro
grita através dos séculos: "de onde procede essa contração dolorosa no
rosto da natureza, essa lamentação fúnebre infindável que ressoa através
de todas as esferas da existência?" E Heidegger repete: "Tudo o que
vive tem a natureza da dor." Foi numa tarde que uma criança pintada de
dia e vestida de noite pediu-me para falar do mundo. E falei de vários
fatos e coisas do pouco que sei. Não estava satisfeito mas acho que num
sonho, nesta mesma noite, esclareci tudo sobre o que gostaria de ter
falado. - Não posso falar do mundo mas talvez consiga resumir os últimos
mil anos da humanidade numa notícia publicada no jornal O Povo, de
Fortaleza, no dia 23 de dezembro de 1999: "Menina atropelada quando
tentava apanhar um pão. A criança teve morte imediata. O motorista do
caminhão fugiu, mas testemunhas afirmaram que ele não teve culpa - Às
vésperas do Natal, quando crianças sonham com uma ceia farta, no bairro
Jangurussu uma menina de 7 anos foi atropelada e morta por um caminhão
de lixo quando corria para pegar um pãozinho atirado de outro veículo.
Desde o início da tarde de ontem, Juliana Ferreira de Souza brincava com
outras crianças na avenida Itaperi, perto de sua casa, nas proximidades
do antigo aterro do Jangurussu. Pouco depois das 14 horas, passou um
carro e um dos ocupantes atirou pãezinhos no lado oposto ao qual as
crianças brincavam. As crianças cruzaram a avenida correndo para tentar
pegar os pães. Juliana não teve a mesma sorte dos colegas e foi
atropelada". Eis tudo: a fome e a miséria, a violência e a
arrogância, a indiferença e a dor. O grito da mãe de Juliana ecoará por
séculos e séculos, sem descanso. Será que alguém o ouvirá?
(Texto de dezembro de 2000).
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