quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Encontro com Circe

A Odisséia, de Homero, conta a história do retorno do herói Ulisses à sua casa, após ter ajudado os gregos a venceram a batalha de dez anos contra Tróia. A viagem de volta também demora dez longos anos, e é repleta de aventuras. No livro X da Odisséia, Ulisses e seus camaradas chegam à ilha da feiticeira Circe, a de belas coifas, no dizer de Ezra Pound. Abaixo reproduzimos alguns pequenos versos da belíssima tradução portuguesa – um verdadeiro tesouro, de Manoel Odorico Mendes (1899 – 1964) - quando os marujos se deparam com Circe pela primeira vez.


"Na ilha aporto Eéia, da terrível
Música Circe de madeixas de ouro,
Irmã de Etas prudente, nados ambos
Do claro Sol e da Oceânia Persa.
A largo surgidouro um deus nos guia;

 Lá, de cansaço e de ânsias corroídos,
Longamente e em silêncio repousamos.
Da aurora crinisparsa à luz terceira,
A espada e lança tomo, um alto subo
Donde ouça vozes ou culturas veja;
Paro no áspero tope, enxergo um fumo
Que dentre um carvalhal saía em cerco
Do palácio de Circe. N’alma volvo
Se após o fumo avance; mas prefiro
Ir a bordo, e à maruja dado o almoço,

 Enviar adiante exploradores.
Da nau já perto, condoído um nume
Da minha soledade, ofereceu-me
Galheiro cervo, que do pasto ao rio
Vinha beber, da calma estimulado:
 A bronze o atravessei pelo espinhaço,
E o bruto cai berrando e a vida exala;
Pulo, saco-lhe o hastil, por terra o deixo,
Vimes despego e silvas, e torcendo-os
Corda formo de braça, os pés lhe amarro;
Firme n’hasta, ao cachaço o levo preso,
Porque de uma só mão, sobre uma espádua,
Suster carga tamanha era impossível.
Ante os sócios o arrojo, e em modo afável
Os conforto um por um: “A Dite, amigos,
Só baixaremos do fatal instante;
Comei, bebei, de fome não morramos.”


   Dóceis levantam-se, e na praia admiram
O enorme cervo, e os olhos tendo fartos,
As mãos lavadas, o festim preparam.
Veação gorda e vinho, até ser tarde,
Nos regalaram; sobre a noite escura
Na marítima areia adormecemos.
No amanhecer, convoco e falo a todos:
“Por mais graves que sejam nossas penas,
Atendei-me, consócios. Ignoramos
Se a terra é donde o Sol mergulha em trevas,
Ou do fúlgido eôo em que ele nasce;
Quero vos consultar, eu nada afirmo.
Do cume de um penhasco, vi que a cinge
Mar infinito, humilde ilha pequena,
Que dentre basto carvalhal fumega.”
   Estala o coração, lágrimas chovem;
Das cruezas de Antífates se lembram,
E do fero antropófago Ciclope.
Chorar que vale? Em corpos dous os nossos,
Mando eu um, outro Euríloco deiforme:
Sacudidas as sortes no elmo aêneo,
Sai a do bravo Euríloco; este parte
Com vinte dous gementes companheiros,
Que apartam-se de nós também gementes.



  Num vale acham marmóreo insigne paço,
Que cercam lobos e leões, de Circe
Com peçonha amansados: contra a gente
Não remeteram de unhas lacerantes,
Sim alongando a cauda os afagaram,
Como festejam cães o meigo dono
Que lhes traz do banquete algum bocado;
Mas, a tal vista, ao pórtico medrosos
Retiveram-se os Gregos. Dentro ouviam
Cantar suave a crinipulcra Circe,
Teia a correr brilhante, que só deusas
Lavram tão fina e bela. Eis diz Polites,
Chefe que eu mais prezava: “No alto, amigos,
Mulher ou deusa tece; o pavimento
Ressoa todo ao cântico: falemos.”

  Gritam; Circe aparece, e abrindo as portas
Resplendentes, convida esses incautos;
Só, receoso, Euríloco repugna.
Senta-os a deusa em tronos e camilhas;
Escândea e quijo com Paneio vinho
Mistura e fresco mel, poção lhe ajunta
Que deslembra da pátria. Mal a engolem,
Toca-os de vara, na pocilga os fecha,
Porcos sendo no som, no vulto e cerdas,
A inteligência embora conservassem.
Tristes grunhindo, a maga lhes atira
Glande, azinha e cornisolo, sustento
Próprio desses rasteiros foçadores."

 

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