sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Canto noturno...

Giacomo Leopardi e um pouco da sua melancolia, da sua consciência de ser uma vida humana e da simultânea incompreensão desta condição. Canto noturno de um pastor errante da Ásia é um poema que me lembra uma ideia expressa num templo em Kyoto, que substancialmente dizia o seguinte: 'Quão misterioso é: estar vivo e, ainda, ser um humano'.

Canto noturno de um pastor errante da Ásia
Giacomo Leopardi
 
Que fazes tu, oh! lua, no céu ? Dize-me, que fazes, oh! lua silenciosa ?
Despontas à noite e vais contemplando os desertos; depois, descansas.
Não estás ainda satisfeita da tua jornada pelos sempiternos caminhos? Ainda não te aborreceste? Ainda gostas de olhar estes vales?
A vida de pastor é parecida com a tua, pois se levanta ao raiar do dia e, pelos campos, tangendo o rebanho, vê ovelhas, fontes e ervas; depois, cansado, repousa á noite e nada mais espera.
Dize-me oh! lua, que vale ao pastor, como a ti mesma, a própria vida ? Dize-me para que rumos caminha esta minha vida e para onde vai a tua rota eterna ?
Pobre velho encanecido, enfermo e quase nu, com um grande feixe sobre os ombros, pelas montanhas e pelos vales, por anfractuosidades, por pedras vivas, e areias; ao vento, ás tempestades, sob o calor, como sob o gelo, corre sempre, E, assim, atravessa rios e lagos, para cair e ressurgir além, sem descanso e sem repouso, em andrajos e sangrando. Para chegar, enfim, àquele lugar, ao qual a estrada e as fadigas o conduziram: abismo horrível, imenso, onde, ele, ao precipitar-se, tudo esquece. Virgem lua, assim é a vida humana!
Com fadiga nasce o homem e o próprio nascimento é perigo de morte. A primeira coisa que sente crescer, um e outro o amparam, com gestos e palavras, e se esforçam por animá-lo e consolá-lo da sua condição humana. Os pais não têm melhor missão do que esta!
Mas, por que dá-lo ao sol, por que dá-lo á vida, se é necessário consolá-lo depois? Se a vida é desventura, por que vive-la ?
Eis a posição humana, oh! lua imaculada!
Mas, tu não és mortal, por isso não te importas, talvez, da minha queixa.
No entanto, eterna e solitária peregrina, que tão pensativa és, tu, talvez, compreendas esta vida terrena, o nosso sofrimento, a nossa angustia, a nossa morte, o nosso parecer, este supremo desfalecimento do semblante ao findar na terra e ter que abandonar as pessoas amadas.
Tu, certamente, compreendes o porquê das coisas, e vês a razão de tudo, desde a manhã á noite, no silencioso e infinito rolar do tempo.
Tu sabes, por certo, a que doce amor sorria a primavera, a quem seja útil o estio e o que o inverno procura com os seus gelos.
Mil coisas tu sabes, mil coisas descobres, que ficam ocultas ao simples pastor.
Ás vezes, quando eu te observo, tão muda no deserto tão plano, que, ao longe, confina com a fimbria do horizonte e te descubro, seguindo-me passo a passo com as minhas ovelhas e fico a olhar o incêndio dos astros, penso, entre mim: para que tantas estrelas? Que significam o ar infinito e essa profunda serenidade do céu? Que quer dizer esta imensa solidão? E eu, quem sou?
Assim, eu medito sobre essa amplidão desmedida e soberba, e sobre a inumerável criação; sobre tantos movimentos de todas as coisas celestes e terrenas, que rolam sem pouso, para voltar sempre de onde vieram. Não decifro a razão e o motivo. Mas, tu, donzela imortal, sabes tudo.
Isto eu conheço e sinto: que estas eternas caminhadas e do meu frágil ser, algum bem ou contentamento outros terão. Para mim, a vida é o mal.
Oh! minha ovelha que descansas, oh! tu feliz que nada sabes, por certo, da tua miséria. Quanto te invejo! Não porque vais liberta da angustia, ou porque esqueces logo o mal ou o temor, mas porque nunca provas do tédio. Quando tu te sentas á sombra, sobre a relva, ficas quieta e contente. E consomes assim, a maior parte do ano, sem aborrecimentos. Ma, eu também me sento sobre a relva, á sombra, e um tédio me invade a mente e uma dor quase me punge, pois mesmo sentado eu estou bem longe de ter paz ou silencio. E, no entanto, nada desejo e não tenho até aqui razão de pranto. O que tu gozas ou quanto tu gozas eu não sei; mas, afortunada tu és. Eu também gozo pouco, oh! minha ovelha, e disso não me lamento. Se tu soubesses falar, eu perguntaria: dize-me, porque descansando á vontade, no ócio, todo o animal fica contente? Mas, porque se eu permaneço em repouso, o tédio me assalta?
Se eu tivesse asas para voar sobre as nuvens, e contar uma a uma todas as estrelas, ou como o trovão, errar de monte em monte, mais feliz eu seria, minha doce ovelha, mais feliz eu seria, cândida lua. Ou, talvez, fuja á verdade o meu pensamento, olhando a sorte alheia; seja qual for a forma, seja qual for a condição, dentro de um covil como dentro de um berço, é funesto para quem nasce o dia natal.

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