sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Leve como um suspiro...

O leve rumor, quase um sussurro, na sua luminosidade assombrosa como poucos iguais a Proust, no terceiro volume do Em busca do tempo perdido, conseguiram captar. E a percepção dos ruídos discretos, despertados pelo fogo que queima na lareira... Proust em outros momentos geniais de apreensão da realidade:

"Parei um segundo ante a porta fechada, pois ouvia movimentos; arrastavam uma coisa, deixavam cair outra; sentia que o quarto não estava vazio e que havia alguém. Mas era apenas o fogo aceso que ardia. O fogo não podia estar tranquilo, movia as achas, e isso muito desajeitadamente. Entrei; ele deixou cair uma, fez fumegar outra. E mesmo quando não se movia, fazia a todo instante ouvir ruídos como as pessoas vulgares, os quais, vendo eu as chamas, se me apresentavam como ruídos de fogo, mas que, se estivesse do outro lado da parede, julgaria provenientes de alguém que se assoasse e andasse de um lado para outro. (...) Ouvia o tique-taque do relógio de Saint-Loup, o qual não devia estar muito longe de mim. Esse tique-taque mudava de lugar a todo momento, pois eu não via o relógio; parecia-me vir de trás de mim, da minha frente, da direita, da esquerda, às vezes extinguir-se como se estivesse muito longe. De repente descobri o relógio em cima da mesa. Então ouvi o tique-taque num lugar fixo, de onde não mais se moveu. Pelo menos julgava ouvi-lo naquele ponto; não o escutava ali, via-a, os sons não têm lugar. Pelo menos os ligamos a movimentos e assim têm eles a utilidade de nos prevenir a respeito destes, de parecer que os tornam necessários e naturais."

" Ontem ainda os ruídos incessantes, descrevendo-nos de modo contínuo os movimentos da rua e da casa, acabavam por nos adormecer como um livro aborrecido; hoje, na superfície de silêncio estendida sobre o nosso sono, um choque, mais forte que os outros, chega a fazer-se ouvir, leve como um suspiro, sem ligação com nenhum outro som, misterioso; e o pedido de explicação que ele nos exala basta para acordar-nos. Que se retirem por um instante ao doente os algodões superpostos ao seu tímpano e subitamente a luz, o sol pleno do som, ofuscante, aparece, ressurge no universo; a toda velocidade regressa o povo aos rumores vedados; assiste-se, como se fossem salmodiadas por anjos musicistas, à ressurreição das vozes. As ruas vazias, num instante as enchem as asas rápidas e sucessivas dos bondes cantores." 

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