domingo, 19 de janeiro de 2014

Recordação da infância

O menino Marcel, que lia livros de aventuras durante as tardes de verão sob o castanheiro, envelheceu. Num determinado momento ele tenta lembrar-se da Combray e da Paris daqueles tempos passados. Mas as cidades conhecidas não mais existem. O progresso as transformou e agora para visitá-las, apenas viajando pela memória. Assim nos conta Proust em dois momentos de grande literatura:

“ (...) rua tão estranha como seu nome, de que me pareciam derivar suas particularidades curiosas e sua personalidade rebarbativa e que em vão procuraríamos na Combray de hoje, porque no lugar que ocupava se ergue atualmente uma escola. Mas minha imaginação não deixa de pé uma só pedra da nova construção, e abre e ´restitui´ a rua de Perchamps. Para essas reconstituições, ela dispõe aliás de dados mais precisos do que aqueles que têm em geral os restauradores: algumas imagens conservadas em minha memória, as últimas talvez que ainda existam atualmente e destinadas em breve a sumir-se, do que era Combray do tempo de minha infância.

Eu desejaria encontrá-los tais como as recordava. (...) Aliás, agora, só muito tarde se regressava a Paris. A sra. Swann ter-me-ia respondido, de um castelo, que só voltaria em fevereiro, muito depois do tempo dos crisântemos, caso lhe tivesse eu pedido que reconstituísse para mim os elementos daquela recordação que sentia ligada a um ano longínquo, a de milésimo ao qual não me era dado remontar, os elementos daquele desejo que por sua vez se tornara inacessível como o prazer que outros perseguira em vão. E também seria preciso que fossem as mesmas mulheres, aquelas cujas toaletes me interessavam, porque, no tempo em que eu ainda tinha crença, minha imaginação as tinha individualizado e cercado de uma lenda. Ai! Na avenida das Acácias – a alameda dos Mirtos – tornei a ver algumas, velhas, que não eram mais do que as sombras terríveis do que tinham sido, errantes, a procurar desesperadamente não se sabia o quê, pelos bosque virgilianos. (...) grandes pássaro cruzavam rapidamente o Bosque, como a um bosque, e soltando gritos agudos, pousavam um após outro nos grandes carvalhos que, sob a sua coroa druídica e com uma majestade dodônea, pareciam proclamar o vazio inumano da floresta desapropriada, e me ajudavam a melhor compreender a contradição que existe em procurar na realidade os quadros da memória, aos quais faltaria sempre o encanto que lhes vem da própria memória e de não serem percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos.

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