terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A princesa e a duquesa

A aristocracia se foi e a superioridade dos seus educadíssimos representantes ficou apenas nas páginas dos livros, como a lembrança da princesa de Guermantes e de sua prima, a duquesa de Guermantes, na descrição de Proust em Le côté de Guermantes - (O caminho de Guermantes) tradução de Mario Quintana - no terceiro volume do Em busca do tempo perdido.

"Como uma grande deusa que preside de longe aos jogos das divindades inferiores, a princesa permanecera voluntariamente um pouco para o fundo, num canapé lateral, vermelho como uma rocha de coral, ao lado de uma larga reverberação vítrea, que era provavelmente um espelho e fazia pensar nalguma secção que um raio teria praticado, perpendicular, obscura e líquida, no cristal resplandescente das águas. Ao mesmo tempo pluma e corola, tal como certas florações marinhas, uma grande flor branca, penujosa como uma asa, descia da fronte da princesa, ao longo de uma de suas faces, de que seguia a inflexão com uma docilidade faceira, amorosa e viva, e parecia encerrá-la a meio, como um ovo róseo na suavidade de um ninho de alcíone. Sobre a cabeleira da princesa, e baixando até as sobrancelhas, depois reunindo-se mais abaixo, à altura da garganta, estendia-se uma rede feita dessas conchinhas brancas que se pescam em certos mares austrais e que eram entremeadas com pérolas, mosaico marinho mal saído das vagas e que de momento se achava mergulhado na sombra, a cujo fundo, mesmo então, uma presença humana era revelada pela mobilidade fúlgida dos olhos da princesa. A beleza que colocava esta muito acima das outras filhas fabulosas da penumbra não estava, de todo, material e inclusivamente inscrita na sua nuca, nas suas espáduas, nos seus braços, no seu talhe. Mas a linha deliciosa e inacabada deste era o exato ponto de partida, a geração inevitável das linha invisíveis que o olhar não podia deixar de prolongar, maravilhosas, engendradas em torno da mulher como o espectro de uma figura ideal projetada nas trevas.
(...)
No momento em que começava a segunda peça, olhei para o camarote da sra. de Guermantes. Essa princesa, com um movimento gerador de uma linha deliciosa que meu espírito prosseguia no vazio, acabava de voltar a cabeça para o fundo do camarote; os convidados estavam de pé, também voltados para o fundo, e eis que, entre a dupla fileira que eles formavam, em toda a sua segurança e grandeza de deusa, mas com uma doçura desconhecida, que se devia à afetada e sorridente confusão de chegar tão tarde e fazer levantar todo mundo no meio da representação, entrou, toda envolta em brancas musselinas, a duquesa de Guermantes.
(...)
Em vez das maravilhosas e suaves plumas que desciam da cabeça ao pescoço da princesa, em vez da sua rede de conchas e pérolas, a duquesa não tinha nos cabelos senão uma simples aigrette que, dominando seu nariz arqueado e seus olhos proeminentes, parecia a crista de um pássaro. Seu pescoço e suas espáduas brotavam de uma onda nevosa de musselina contra a qual vinha bater um leque de plumas de cisne, mas em seguida o vestido, cujo corpete tinha como único adorno inumeráveis palhetas, ou de metal, em varinhas e em grãos, lhe modelava o corpo com uma precisão inteiramente britânica. Mas por mais diferentes que fossem as duas toilettes, depois que a princesa cedeu à prima a cadeira que ocupava até então, viram-nas voltar-se uma para a outra, a se admirarem reciprocamente.

Talvez a sra. de Guermantes tivesse no dia seguinte um sorriso ao falar no toucado um pouco complicado da princesa, mas certamente declararia que nem por isso estava menos encantadora e maravilhosamente preparada; e a princesa que, por gosto, acharia alguma coisa de frio, de seco, de um pouco couturier, na maneira como se vestia a prima, descobriria nessa estrita sobriedade um bizarro refinamento. Aliás, entre elas, a harmonia, a preestabelecida gravitação universal da sua educação neutralizavam os contrastes, não só de enfeite, mas também de atitude. Nessas linhas invisíveis e imantadas que a elegância de maneiras estendia entre elas, vinha expirar o natural expansivo da princesa, ao passo que a retidão da duquesa se deixava atrair, dobrar, tornava-se doçura e encanto."



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