A aristocracia se foi e
a superioridade dos seus educadíssimos representantes ficou apenas nas
páginas dos livros, como a lembrança da princesa de Guermantes e de sua
prima, a duquesa de Guermantes, na descrição de Proust em Le côté de Guermantes - (O caminho de Guermantes) tradução de Mario Quintana - no terceiro volume do Em busca do tempo perdido.
"Como
uma grande deusa que preside de longe aos jogos das divindades
inferiores, a princesa permanecera voluntariamente um pouco para o
fundo, num canapé lateral, vermelho como uma rocha de coral, ao lado de
uma larga reverberação vítrea, que era provavelmente um espelho e fazia
pensar nalguma secção que um raio teria praticado, perpendicular,
obscura e líquida, no cristal resplandescente das águas. Ao mesmo tempo
pluma e corola, tal como certas florações marinhas, uma grande flor
branca, penujosa como uma asa, descia da fronte da princesa, ao longo de
uma de suas faces, de que seguia a inflexão com uma docilidade faceira,
amorosa e viva, e parecia encerrá-la a meio, como um ovo róseo na
suavidade de um ninho de alcíone. Sobre a cabeleira da princesa, e
baixando até as sobrancelhas, depois reunindo-se mais abaixo, à altura
da garganta, estendia-se uma rede feita dessas conchinhas brancas que se
pescam em certos mares austrais e que eram entremeadas com pérolas,
mosaico marinho mal saído das vagas e que de momento se achava
mergulhado na sombra, a cujo fundo, mesmo então, uma presença humana era
revelada pela mobilidade fúlgida dos olhos da princesa. A beleza que
colocava esta muito acima das outras filhas fabulosas da penumbra não
estava, de todo, material e inclusivamente inscrita na sua nuca, nas
suas espáduas, nos seus braços, no seu talhe. Mas a linha deliciosa e
inacabada deste era o exato ponto de partida, a geração inevitável das
linha invisíveis que o olhar não podia deixar de prolongar,
maravilhosas, engendradas em torno da mulher como o espectro de uma
figura ideal projetada nas trevas.
(...)
No
momento em que começava a segunda peça, olhei para o camarote da sra.
de Guermantes. Essa princesa, com um movimento gerador de uma linha
deliciosa que meu espírito prosseguia no vazio, acabava de voltar a
cabeça para o fundo do camarote; os convidados estavam de pé, também
voltados para o fundo, e eis que, entre a dupla fileira que eles
formavam, em toda a sua segurança e grandeza de deusa, mas com uma
doçura desconhecida, que se devia à afetada e sorridente confusão de
chegar tão tarde e fazer levantar todo mundo no meio da representação,
entrou, toda envolta em brancas musselinas, a duquesa de Guermantes.
(...)
Em
vez das maravilhosas e suaves plumas que desciam da cabeça ao pescoço
da princesa, em vez da sua rede de conchas e pérolas, a duquesa não
tinha nos cabelos senão uma simples aigrette que, dominando seu
nariz arqueado e seus olhos proeminentes, parecia a crista de um
pássaro. Seu pescoço e suas espáduas brotavam de uma onda nevosa de
musselina contra a qual vinha bater um leque de plumas de cisne, mas em
seguida o vestido, cujo corpete tinha como único adorno inumeráveis
palhetas, ou de metal, em varinhas e em grãos, lhe modelava o corpo com
uma precisão inteiramente britânica. Mas por mais diferentes que fossem
as duas toilettes, depois que a princesa cedeu à prima a cadeira
que ocupava até então, viram-nas voltar-se uma para a outra, a se
admirarem reciprocamente.
Talvez
a sra. de Guermantes tivesse no dia seguinte um sorriso ao falar no
toucado um pouco complicado da princesa, mas certamente declararia que
nem por isso estava menos encantadora e maravilhosamente preparada; e a
princesa que, por gosto, acharia alguma coisa de frio, de seco, de um
pouco couturier, na maneira como se vestia a prima, descobriria
nessa estrita sobriedade um bizarro refinamento. Aliás, entre elas, a
harmonia, a preestabelecida gravitação universal da sua educação
neutralizavam os contrastes, não só de enfeite, mas também de atitude.
Nessas linhas invisíveis e imantadas que a elegância de maneiras
estendia entre elas, vinha expirar o natural expansivo da princesa, ao
passo que a retidão da duquesa se deixava atrair, dobrar, tornava-se
doçura e encanto."
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