terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A variedade dos defeitos


Proust foi um excelente observador da alma humana. No momento em que ele mostra as qualidades e os defeitos do personagem Bloch, na "À sombra das raparigas em flor" (segunda parte de “Em busca do tempo perdido”), num parágrafo de três páginas, ele faz uma análise psicológica primorosa dos defeitos apresentados de uma forma geral por todas as pessoas. O ser humano é posto a nu pela pena do genial francês. Abaixo reproduzimos pequenos textos, na também primorosa tradução de Mario Quintana:

“Mas não menos admirável do que a semelhança das virtudes é a variedade dos defeitos. Todo mundo tem os seus, e, para continuar querendo a uma pessoa, não há outro remédio senão passá-los por alto e desdenhá-los em favor de outras qualidades. A pessoa mais perfeita tem sempre determinado defeito que choca ou irrita.”

“Como o perigo de desagradar provém principalmente da dificuldade em avaliar quais as coisas que se notam e quais as que não são notadas, pelo menos por prudência nunca deveria a gente falar de si mesmo, pois é esse um tema em que seguramente a nossa visão e a alheia não coincidem nunca. Descobrir a verdadeira vida do próximo, o universo real sob o universo aparente, nos causa tanta surpresa como visitar uma casa de insignificante aparência e encontrá-la cheia de tesouros, de gazuas ou cadáveres; e não é menor a surpresa quando, em vez da imagem que havíamos formado de nós mesmos graças ao que alguém disse de nós, nos certificamos, pelo que essas mesmas pessoas dizem quando estamos ausentes, da imagem inteiramente diversa que guardam de nós e da nossa vida. De sorte que cada vez que acabamos de falar de nós, não podemos saber se nossas palavras, prudentes e inofensivas, escutadas com aparente cortesia e hipócrita aprovação, vão ser ou não motivo de comentários indignados ou divertidos, mas em todo caso desfavoráveis.”

“Ao mau costume de falar de si mesmo e dos próprios defeitos, cumpre acrescentar, como formando bloco com o mesmo, esse outro hábito de denunciar nos caracteres alheios defeitos análogos aos nossos. E constantemente estamos a falar nos referidos defeitos, como se fora uma espécie de rodeio para falar em nós mesmos, em que se juntam o prazer de confessar e o de absolvermo-nos. Aliás, parece que a nossa atenção, sempre atraída pelo que nos caracteriza, assinala-o nas outras pessoas mais que qualquer outra coisa.”


Mais à frente, no terceiro volume de Em busca do tempo perdido, "O caminho de Guermantes" Proust retorna ao tema dos defeitos humanos, tomando como exemplo ele próprio e os comentários de sua governanta Françoise.

“Talvez eu pudesse tê-lo suspeitado, pois a mim mesmo, então, muitas vezes acontecia dizer coisas em que não havia nenhuma verdade, ao passo que a revelava por tantas confidências involuntárias de meu corpo e de meus atos (as quais eram muito bem interpretadas pro Françoise); talvez o tivesse suspeitado, mas para isso seria preciso que eu então soubesse que era às vezes mentiroso e trapaceiro. Ora, a mentira e a trapaça eram em mim, como em todo o mundo, comandadas de um modo tão imediato e contingente, e para sua defensiva, por um interesse particular, que meu espírito, fixado num belo ideal, deixava meu caráter cumprir na sombra aqueles serviços urgentes e mesquinhos e não se desviava para observá-los."

"O fato é que reconheci a impossibilidade de saber de maneira direta e certa se Françoise me estimava ou me detestava. E assim foi ela quem primeiro me deu a ideia de que uma pessoa não está, como eu supunha, nítida e imóvel diante de nossos olhos, com suas qualidades, seus defeitos, seus projetos, suas intenções para conosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de atos, palavras e atos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verossimilhança, que brilham o ódio e o amor."


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