sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A poesia na pintura de Elstir

Na recordação dos singelos fatos do passado e na reconstrução de vários momentos que formavam as várias facetas da vida do personagem do "Em busca do tempo perdido" de Proust, há um espaço especial devotado às várias manifestações da arte. Aparecerão em destaque, diversos personagens que captam a essência transcendental da arte: o escritor Bergotte, a atriz Berma, o músico Vinteuil e o pintor Elstir. Este último, que o narrador conhecera em Balbec e se tornara seu amigo, possui várias obras na casa do duque e da duquesa de Guermantes. O narrador, em uma oportunidade, conhece estas obras da coleção particular dos Guermantes e se encanta, não percebendo a passagem do tempo. Eis parte da descrição magistral de Marcel Proust a este momento único:

"Comoveu-me encontrar em dois quadros (mais realistas e de uma maneira anterior) o mesmo cavalheiro, uma vez de fraque, no seu salão, outra vez de casaca e cartola numa festa popular à beira d'água, onde não tinha evidentemente o que fazer, e que demonstrava que para Elstir ele não era apenas um modelo habitual, mas um amigo, talvez um protetor, que ele gostava, como outrora Carpácio com determinados senhores notáveis - e perfeitamente semelhantes - de Veneza, de fazer figurar em suas pinturas, da mesma forma que Beethoven tinha prazer em inscrever no alto de uma obra preferida o nome dileto do arquiduque Rodolfo. Aquela festa a beira-rio tinha qualquer coisa de encantador. O rio, os vestidos das mulheres, as velas dos barcos, os reflexos inumeráveis de uns e outras achavam-se em vizinhança naquele quadrado de pintura que Elstir havia recortado de uma tarde maravilhosa. O que encantava no vestido de uma mulher que deixara um momento de dançar por causa do calor e da sufocação era igualmente cambiante, e, da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no pontão de madeira, nas folhagens e no céu. (...) Pois bem, este soubera imortalmente deter o movimento das horas naquele instante luminoso em que a dama sentira calor e deixara de dançar, em que a árvore estava cercada de um contorno de sombra, em que as velas pareciam deslizar sobre um verniz de ouro. Mas justamente porque o instante pesava sobre nós com tamanha força, aquela tela tão fixa dava a impressão mais fugitiva, sentia-se que a dama ia em breve voltar-se, os barcos desaparecerem, a sombra mudar de lugar, a noite descer, que o prazer acaba, que a vida passa e que os instantes, mostrados ao mesmo tempo por tantas luzes que se lhes avizinham, não tornamos a encontrá-los."

Nenhum comentário:

Postar um comentário