sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A mulher e a imaginação

Galois duelou por uma mulher e morreu aos vinte anos de idade... O jovem aristocrata Robert Saint-Loup, no Em busca do tempo perdido, encontrava-se perdidamente apaixonado por uma mulher que aos seus olhos, era absolutamente fantástica. Mas quando esta mulher foi apresentada ao narrador, ele a reconheceu como uma das prostitutas do bordel. Proust sugere, então, que a paixão tem origem na imaginação e não propriamente no ser por quem se terá a devoção. Porque na imaginação tudo pode acontecer, todas as possibilidades se tornam realidade. "Piovve dentro a l'alta fantasia”, isso sim é o real.

Proust, novamente no “O caminho de Guermantes” (Le côté de Guermantes):

“Ante aquela mulher cuja vida inteira, cujos pensamentos, como todo o seu passado e os homens que pudessem tê-la possuído eram para mim coisa tão indiferente que, se mo houvesse contado, a teria escutado meramente por cortesia e sem ao menos ouvi-la, senti que a inquietação, o tormento, o amor de Saint-Loup se haviam aplicado até fazer – do que era para mim um brinquedo mecânico – um objeto de sofrimentos infinitos, o próprio preço da existência. Vendo esses dois elementos dissociados (pois eu conhecera ‘Rachel quando do Senhor’ numa casa de tolerância), considerava comigo quantas mulheres pelas quais os homens vivem, sofrem e matam-se podem ser em si mesmas ou para outros o que Raquel era para mim. Assombrava-me que pudesse ter uma curiosidade dolorosa a respeito da sua vida. Poderia contar muitas cópulas suas a Robert, as quais me pareciam a coisa mais indiferente do mundo. E como o teriam mortificado! E que não daria ele para as conhecer, sem conseguí-lo?

Via tudo quanto a imaginação humana pode por atrás de um palminho de cara como o daquela mulher, se foi a imaginação que a conheceu primeiro; e, inversamente, em que míseros elementos materiais, destituídos de qualquer valor, abaixo de qualquer preço, podia decompor-se o que era a finalidade de tantos sonhos, fosse aquilo mesmo conhecido de maneira oposta pelo conhecimento mais trivial. Compreendia que o que me parecera não valer vinte francos quando me fora oferecido por vinte francos numa casa de tolerância, ou quando era apenas para mim uma mulher desejosa de ganhar vintes francos, pode valer mais que um milhão, que a família, que todas as posições invejadas, se se começou por imaginar nela um ser desconhecido, curioso de conhecer, difícil de apanhar, de conservar. Era sem dúvida o mesmo rosto fino e miúdo que víamos Robert e eu. Mas tínhamos chegado a ele pelos dois caminhos opostos que jamais se comunicarão e nunca lhe veríamos a mesma face. Aquele rosto, com os seus olhares, os seus sorrisos, os movimentos de sua boca, eu o conhecera de fora, como o de uma mulher qualquer que faria por vinte francos tudo quanto eu quisesse. Assim, os olhares, os sorrisos, os movimentos de boca me haviam parecido apenas significativos de atos gerais, sem nada de individual, e sob eles eu não teria a curiosidade de procurar uma pessoa. Mas o que me fora de algum modo oferecido na partida, esse rosto condescendente, fora para Robert um ponto de chegada, para o qual se havia dirigido através de quantas esperanças, dúvidas, suspeitas, sonhos! Ele dava mais de um milhão para possuir, para que não fosse oferecido a outros, o que me fora oferecido, como a todos, por vinte francos. Por qual motivo não o obtivera ele por tal preço, talvez seja devido ao acaso de um instante, de um instante durante o qual aquela que parecia prestes a entregar-se, se esquiva, tendo talvez um encontro, qualquer razão que a torne mais difícil nesse dia. (...) Não era ‘Raquel quando do Senhor’ que me parecia coisa de somenos, era o poder da imaginação humana, a ilusão em que se apoiavam as dores do amor que se me afiguravam grandes.

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