segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

E Gilberte se foi...

Na “À sombra das raparigas em flor”, segundo volume de Em busca do tempo perdido, de Proust, vemos desabrochar o amor do jovem narrador pela bela menina de cabelos ruivos, Gilberte. Entretanto, como assevera Proust, “na confusão da existência, é raro que uma felicidade venha pousar justamente sobre o desejo que a reclamara.” Apesar do pequeno Marcel conseguir passar tardes memoráveis na companhia de Gilberte, este relacionamento, de repente, numa tarde, chega ao fim: o jovem perderá a amada para sempre.

Pode ser amargo o sofrimento causado por uma pessoa a quem se ama, mesmo quando está inserido no meio de preocupações, de ocupações, de alegrias que não têm essa criatura por objeto e das quais a nossa atenção só se desvia de tempos em tempos para voltar a ele. Mas quando tal sofrimento nasce – como no presente caso – num instante em que a felicidade de ver essa pessoa nos enche inteiramente, a brusca depressão que se produz em nossa alma até então ensolarada, firme e calma, determina em nós uma tempestade furiosa contra a qual ignoramos se seremos capazes de lutar até o fim. Tão violenta era a que soprava em meu coração que voltei para casa arrasado, mortificado, sentindo que só poderia encontrar a respiração se desandasse o caminho percorrido, se voltasse sob um pretexto qualquer para junto de Gilberte. Mas esta haveria de dizer consigo: “Ainda?! Decididamente, posso fazer-lhe tudo, que ele sempre voltará tanto mais dócil quanto mais infeliz houver partido”. Depois eu era irresistivelmente arrastado para ela pelos meus pensamentos, e essas orientações alternativas, esse desvario da bússola interior ainda persistiram depois que me recolhi ao quarto, traduzindo-se pelos rascunhos de cartas contraditórias que escrevi a Gilberte.

Depois de um longo tempo de separação, algumas poucas cartas circulam de um lado para o outro entre Marcel e Gilberte.

“...ela não deixava de responder:”Pôde a vida separar-nos, mas não poderá fazer-nos esquecer as boas horas que nos serão sempre caras” (muito embaraçados ficaríamos em explicar por que “a vida” nos separa e que mudança se havia operado). Eu já não sofria tanto. Porém, num dia em que lhe contava numa carta haver sabido da morte da nossa velha baleira dos Campos Elísios, e quando acabava de escrever estas palavras: “Creio que isso lhe causou pesar. Em mim, veio agitar muitas recordações”, não pude deixar de romper em pranto, ao ver que tinha falado no passado, e como se se tratasse de um morto já quase esquecido, daquele amor em que, mau grado meu, eu jamais cessara de pensar como se fora vivo, ou pelo menos capaz de renascer. Nada mais terno do que essa correspondência entre amigos que não mais queriam ver-se. As cartas de Gilberte possuíam a delicadeza das que eu escrevia às pessoa indiferentes e me davam os mesmos sinais exteriores de afeto que me era tão grato receber da parte dela. (...) Nesses momentos, lamentava não ter querido entrar para a diplomacia e ter adotado uma vida sedentária, a fim de não me afastar de uma menina que eu não mais veria e que já tinha quase esquecido. Construímos a nossa própria vida para uma pessoa determinada e, quando, afinal, podemos recebê-la em nossa vida, essa pessoa não vem, depois morre para nós, e passamos a viver prisioneiros na moradia que só a ela era destinada.

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