segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A filha amada

O Sr. Swann, requintado frequentador da alta aristocracia francesa, normalmente encontrado na casa de Guermantes, se apaixona perdidamente por uma cocote, Odette, que o despreza e o humilha sem piedade. Mas apesar de tudo, do relacionamento nasce uma filha - Gilberte - que faz com que Swann deixe para trás todas as suas relações aristocráticas e passe a achar de grande monta relacionamentos com a baixa burguesia e com burocratas de segundo escalão. Proust nos diz:

"Swann era de resto cego, no concernente a Odette, não só ante essas lacunas da sua educação como também ante a mediocridade da sua inteligência. Ainda mais, cada vez que Odette contava uma história tola, Swann escutava a mulher com uma complacência, uma alegria, quase uma admiração, onde deviam entrar uns restos de volúpia; ao passo que, na mesma conversação, o que ele próprio pudesse dizer de fino, até mesmo de profundo, era habitualmente escutado por Odette sem interesse, às pressas, impacientemente, e às vezes contraditado com severidade."

Essa é uma página espetacular do "Em busca do tempo perdido". Por causa da filha, Swann abre mão de praticamente toda a sua vida e vai fazer o possível para que ela cresça com dignidade. Marcel, o personagem central do romance se apaixona por Gilberte e vai sofrer por causa deste amor como poucas vezes um tal sofrimento será relatado (comparável, entretanto, ao sofrimento do próprio Swann por causa de Odette). Num momento de grande alegria do adolescente Marcel, ele penetra nas paredes aparentemente intransponíveis da casa de Swann e, numa tarde inesquecível com Gilberte, se delicia com a companhia que deixará nele marcas indeléveis:

"Naquelas tardes de recepção, elevando-me de degrau em degrau na escadaria, já sem pensamento e sem memória, sem ser mais que um joguete dos mais vis reflexos, chegava eu à zona onde se fazia sentir o perfume da sra. Swann. Julgava já ver a majestade do bolo de chocolate, rodeado por um círculo de pratos de petits-fours e pequenos guardanapos damasquinados cinzentos e com desenhos, exigidos pela etiqueta e peculiares aos Swann. Mas aquele conjunto imutável e ordenado parecia depender, como o universo necessário de Kant, de um ato supremo de liberdade. Pois quando estávamos todos no salãozinho de Gilberte, olhando de repente para o relógio, ela dizia:
- Já faz tempo que almocei, e só janto às oito, de modo que tenho vontade de comer alguma coisa. Que me dizem?
E fazia-nos passar para a sala de jantar, sombria como o interior de um templo asiático pintado por Rembrandt, e onde um bolo arquitetural, tão bonachão e familiar quanto imponente, parecia reinar ali à vontde como num dia qualquer, para o caso que desse na fantasia de Gilberte descoroá-lo de suas ameias de chocolate e abater suas muralhas de flancos abruptos, cozidas no forno como os bastiões do palácio de Dario. E ainda mais, para proceder à destruição da pastelaria ninivita, Gilberte não consultava apenas o seu apetite; informava-se também do meu, enquanto extría para mim, do monumento desabado, todo um lanço lustroso e engsatado de frutos vermelhos, ao gosto oriental.
(...)
E eu me lembrava daquela carta de tal maneira completa e persuasiva, que escrevera outrora a Swann e à qual nem sequer se dignara responder. Admirava a impotência do espírito, do raciocínio e do coração em operarem a mínima conversão, em resolverem uma só dessas dificuldades, que em seguida a vida, sem que se saiba ao menos como o fez, tão facilmente soluciona."

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