terça-feira, 21 de janeiro de 2014

As raparigas em flor


Por conta da complexidade da obra de Marcel Proust, muitos intérpretes já escreveram sobre diversos aspectos dos seus escritos. Um dos estudiosos brasileiros da obra proustiana foi José Maria Cançado (1952 - 2006), que publicou pela Editora da UFMG (2008) o pequeno belo livro de ensaios “PROUST – As intermitências do coração e outros ensaios”. Cançado nos diz: “Proust é o escritor cujo método de composição é o mais estrito, o mais rigoroso. Suas frases sempre recomeçadas, que percorremos valendo-nos dos pontilhões das conjunções sintáticas e dos respiradouros das imagens (talvez as mais belas de toda a prosa francesa) essas frases e períodos cujo fim natural não são os limites da pagina  (parecendo antes virarem essa página com o seu sopro e movimento) são o próprio mecanismo do pensamento. Correspondem a esse mecanismo.(...) A frase de Proust não aponta, não designa localizado num ponto determinado do tempo e do espaço. Não é uma forma de notação da realidade. Mas de reconstituição da realidade. Ela não quer sugerir. Ela quer reencontrar.

Num desses reencontros, o narrador Marcel se lembra de seis garotas que passeavam no dique, num final de uma tarde de verão, na pequena Balbec. Preocupadas apenas com a diversão e o prazer, as moças brincam alegremente, ignorando por completo os outros, invisíveis, transeuntes. Essa atitude, aliada à beleza misteriosa das garotas, marcará profundamente aquela tarde da adolescência do narrador enamorado. Proust nos conta, na À sombra das raparigas em flor, na belíssima tradução de Mario Quintana:

Eu olhara bem aqueles rostos; vira cada um deles, não em todas as facetas e rara vez de frente, mas ainda assim de dois ou três ângulos bastante diferentes para que eu pudesse fazer a retificação, ou pelo menos a verificação e ‘prova’ das diferentes suposições de linhas e de cores sugeridas à primeira vista e para ver subsistir neles, através das expressões sucessivas, alguma coisa de inalteravelmente material. Também podia dizer com toda a certeza que nem em Paris, nem em Balbec, na hipótese mais favorável do que poderia ser, mesmo que pudesse ter ficado a conversar com elas, as passantes que detiveram meus olhos, jamais houvera nenhuma cujo aparecimento e sucessivo desaparecimento sem que eu chegasse a conhecê-la, me causasse mais pesar do que o destas, nem me desse a idéia de que a sua afeição pudera ser embriaguez tamanha. Nem entre as atrizes, ou as camponesas, ou as moças do pensionato religioso, eu vira nada de tão belo, impregnado de tal desconhecido, tão inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível.

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